O maior trabalho da moral sempre foi a regulação sexual, porque o instinto reprodutor cria problemas não só dentro do casamento, como antes e depois dele. e a cada instante ameaça perturbar a ordem social com a sua persistência, a sua intensidade, o seu desprezo à lei e às suas perversões. O primeiro destes problemas diz respeito às relações pré-maritais. Mesmo com toda a liberdade sexual de nossos dias, há sempre um limite imposto pela sociedade.
Mesmo entre os animais, o sexo não é completamente livre; a rejeição do macho por parte da fêmea, exceto nos períodos do cio, reduz o sexo a um papel muito mais modesto do que tem ele em nossa espécie. Como disse "Beaumarchais", o homem difere do animal por comer sem ter fome, beber sem ter sede e copular (praticar sexo) em todas as estações. Entre os povos primitivos encontramos algo análogo ás restrições animais no tabu da mulher durante o período menstrual. Fora isso, o intercurso pré-marital é quase sempre livre, nas sociedades mais simples. Entre os índios norte-americanos os jovens uniam-se livremente, sem que mais tarde esse fato constituísse impedimento para o matrimônio. Entre os papuas, a vida sexual começava muito cedo e a promiscuidade pré-marital era a regra. A mesma coisa acontecia entre os soyos da Sibéria, os igorots das Filipinas, os nativos da Alta Burma, os cafires e boximanes, das ilhas Murray, das Andamanes, do Taiti, da Polinésia, do Assam, etc.
Sob tal regime não seria de esperar muita prostituição. A "mais velha das profissões" é relativamente nova; só aparece com a civilização, com o advento da propriedade e o desaparecimento da liberdade pré-marital. Aqui e ali encontramos raparigas que se vendem por algum tempo a fim de reunir dote, ou levantar fundos para os templos; mas isto só ocorre onde o código moral o aprova, como um piedoso sacrifício tendente a ajudar os pais pobres ou os deuses famintos.
A castidade vem depois. O que a moça primitiva mais temia não era a perda da virgindade, mas sim adquirir fama de estéril; com frequência a prenhez pré-marital constituía uma ajuda, em vez de um embaraço, para o casamento, porque provava a fecundidade da mulher. Antes do advento da propriedade, as tribos mais simples tinham em má conta a virgindade, achando-a indicativa de impopularidade. O noivo Kamchadal" que encontrava a sua noiva virgem, enfurecia-se, e insultava-lhe a mãe pela maneira negligente com que educara a filha. Em muitos lugares a virgindade er considerada como barreira ao casamento, porque punha a cargo do noivo a desagradável tarefa de violar o tabu que lhe proibia derramar o sangue da tribo. Às vezes a moça se oferecia a um estrangeiro, como meio de livrar-se desse tabu. No Tibe as mães ansiosamente procuravam um homem que lhes quisesse deflorar as filhas; no Malabar as moças cercavam nas estradas os passantes e lhe pediam o grande favor, porque "enquanto fossem virgens não encontrariam casamento. Em algumas a noiva era obrigada, no dia do casamento, a dar-se aos hóspedes vindos à festa, antes de entregar-se ao marido; em outras o noivo contratava um homem para lhe desvirginar a noiva; entre certas tribos das Filipinas havia um funcionário, muito bem pago, incumbido de poupar os noivos esse incômodo.
O que sera que transformou a virgindade, de um defeito a uma virtude e tanto a elevou nos códigos morais das mais altas civilizações? Indubitavelmente, a instituição da propriedade. A castidade pré-marital apareceu como extensão ás filhas do sentimento de propriedade com que o macho patriarca olhava para sua mulher. A valorização da virgindade sobreveio quando, no casamento por compra, a noiva virgem começou a alcançar melhor preço que anão virgem; trazia um atestado referente ao seu passado e uma promessa da fidelidade marital, agora tão cara para os homens receosos de que seus bens se fossem para filhos de outros machos.
Os homens, porém, nunca pensaram em aplicar essas restrições a si mesmos; não aparece na história nenhuma sociedade estabelecendo a castidade pré-marital do macho; língua nenhuma ainda cunhou palavra designativa do homem virgem. A aura virginal representava-se unicamente para as moças. Os tuaregs puniam com a morte a irregularidade das filhas ou irmãs; os negros da Núbia, da Abissínia, Somália, etc., praticavam nas meninas a cruel arte de "infibulação", isto é colocar um anel fixo nas partes genitais , de modo a impedir a copula; em Burma e no Sião essa prática subsistiu até nossos dias. Formas de separação surgiram, por meio das quais as meninas eram impedidas de ser tentadas. Na Nova Betanha os pais ricos confinavam as filhas, durante os cinco anos perigosos, em cabanas guardadas por velhos negros;dali não podiam sair e só os parentes as visitavam. Algumas tribos de Borneo também guardavam as moças em rigoroso confinamento. Destes primitivos costumes ao "purdah" dos muçulmanos e hindus, só vai um passo - o que mostra quando perto da selvageria ainda está a nossa civilização.
O pudor sobrevém com a virgindade e o patriarcado. Ainda hoje vemos muitas tribos em que não há o menor vexame na exposição do corpo nu; mas envergonham-se de usar roupas. A África inteira rolou de rir quando Livingstone impediu aos negros que o hospedavam para porem alguma tanga por por ocasião da vinda de sua esposa, madame livingstone. A rinha de Balonda apresentou-se completamente nua ao receber esse explorador. Em certo número de tribos os pares copulavam publicamente, sem o menor pensamento de vergonha. No começo o pudor é para a mulher o sentimento de que ela é tabu nos seus períodos menstruais. Quando surge o casamento por compra e a virgindade das filhas começa a dar lucro aos pais, a separação e a compulsão à virgindade entram a criar nas meninas o senso do dever de castidade. De novo o pudor mostra-se como sentimento na mulher que, comprada, sente-se em obrigação financeira para com o marido, e refreia-se de gratuitas relações sexuais com outros. O vestuário surge neste ponto, caso motivo de proteção ao corpo já não o tenham engendrado; em muitas tribos as mulheres só passam a andar vestidas depois do casamento, como sinal do seu estado e como meio de afastar a galanteria; o homem primitivo não concorda com o pensamento de Anatole France, que é o cobrir o corpo que produz a luxúria. A castidade, entretanto, não revela nenhuma necessária relação com a roupa; contam alguns viajantes que na África a moral varia em razão inversa à quantidade das roupas. É claro que o que envergonha os homens depende unicamente dos tabus e costumes locais do grupo. Até recentemente a chinesa envergonhava-se de mostrar o pé, a mulher árabe, de mostrar o roto; e a tuareg, de mostrar a boca; mas as antigas egípcias, as hindus do século 19 e as mulheres de Bali do século 20 (antes que ardentes turistas começassem a aparecer por lá), nunca sentiram a menor vergonho em andar com os seios à mostra.
Não devemos concluir que a moral perde o valor pelo fato de assim variar no tempo e no espaço, e que seria revelação da nossa cultura em história o desembaraçar-nos dos costumes morais do grupo em que vivemos. Antropologia em doses muito pequenas é coisa perigosa. Não há a menor dúvida que a moralidade, como diz Anatole France, "é a soma dos preconceitos dum grupo; e que, como disse o grego Anacarsis, se fossemos juntar os costumes considerados sagrados em algum grupo, e depois retirar dele tudo quanto fosse considerado imoral em outro grupo, nada restaria no monte." Mas isto não prova a desvalia da moral; só prova de quantas maneiras diferentes pode a ordem social ser preservada. Essa ordem é indispensável à vida dos grupos; não há jogo que possa ser conduzido sem regras; o homem necessita saber o que lhe pode vir de outro, nas circunstâncias ordinárias da vida. Daí a unanimidade com que os membros duma sociedade praticam o código moral, coisa tão importante como o conteúdo desse código. Nossa heroica rejeição dos costumes e da moral da nossa tribo, quando na adolescência descobrimos a relatividade da moral, apenas revela imaturidade de julgamento; mais uma década que se passe e começamos a perceber a muita sabedoria do código moral que condenávamos, pois que ele consolida a experiência de gerações e gerações anteriores. Cedo ou tarde nos vem a percepção de que mesmo o que é para nós incompreensível pode ser verdadeiro. As instituições, convenções, costumes e leis que formam a complexa estrutura duma sociedade provém do trabalho de centenas de séculos e de milhões de espíritos; um só espírito pode esperar compreendê-lo durante apenas uma vida - e muito menos aos vinte anos de idade. Temos de concluir que a moral é relativa, mas indispensável.
Desde que os velhos costumes básicos representam a seleção natural duma série de modos de agir durante séculos de experiência e erro, podemos esperar descobrir alguma utilidade social, ou valor de sobrevivência, na virgindade e no pudor, a despeito da histórica relatividade dessas instituições, da sua associação ao casamento por compra e das suas contribuições para as neuroses. O pudor era a retirada estratégica que permitia à moça melhor escolha do companheiro, ou a forçava a mostrar as suas mais belas qualidades antes de vencê-la; os embaraços que o pudor levanta contra o desejo do homem geram aqueles sentimentos de amor romântico que elevam a mulher aos seus olhos. A demonstração, ou revelação, da virgindade destruiu a naturalidade da primitiva vida sexual; mas, ao diminuir a precocidade do sexo e a maternidade muito prematura, diminuiu também o espaço entre a natural maturidade sexual, bem como a econômica. Provavelmente serviu para fortalecer o indivíduo no físico e no mental, prolongando a adolescência e a educação, e desse modo elevando o nível da raça humana.
À medida que a instituição da propriedade se desenvolveu, o adultério foi passando de "pecado venial" a "pecado mortal". Metade dos povos primitivos não lhe atribuem nenhuma importância. Mas o surto da propriedade não só levou à exigência da completa feminina, como gerou no homem o senso de domínio em relação à esposa; mesmo quando o marido emprestava a esposa a um hóspede, o que vemos é o uso dum ser que lhe pertence de maneira absoluta. O costume do suttee veio completar esta concepção: a mulher era sacrificada e enterrada no túmulo do marido, com todos pertences deste. Durante o regime do patriarcado, o adultério equiparou-se ao furto; equivaleria hoje a apropriar-se duma propriedade que não lhe pertence. O castigo variava de grau, indo da indiferença, nas tribos mais simples, ao estripamento da adultera, observado em certas tribos da Califórnia. Após séculos de punição, a nova virtude da fidelidade da esposa estabeleceu-se firmemente e gerou uma consciência no coração feminino. Muitas tribos de índios surpreenderam os conquistadores com a irrepreensível conduta das esposas; e certos viajantes lamentam que as mulheres da Europa e da América não possam se igualar em fidelidade marital às da Papuásia e do Reino Zulu.
Essa fidelidade era mais fácil para as papuas, desde que entre suas tribos, como na maioria dos povos primitivos, poucos embaraços se levantavam contra o divórcio. As uniões raramente iam além de poucos anos, entre os índios da América. "Grande número de homens velhos ou maduros", diz Schooleraft, "contam das muitas mulheres que tiveram, e dos muitos filhos espalhados pelo mundo, que lhes são desconhecidos. Eles se "riem dos europeus por terem uma só mulher, e por toda vida; admitem que o Espírito Bom os formou para serem felizes e não para permanecerem amarrados, salvo aos que o desejem por força da congenialidade." Os índios cherokees mudavam de mulher três ou quatro vezes por ano; os somoanos, que eram muito conservadores, mantinham a mesma mulher por três anos em média. Com o advento da vida agrícola, as uniões se tornaram mais permanentes. Sob o sistema patriarcal, o homem considerava antieconômico divorciar-se, porque de fato isso era perder uma escrava. Como a família se tornara a unidade de produção social, o progresso vinha do tamanho e da coesão das famílias; era de vantagem que a união s prolongasse até que o último filho estivesse criado. E chegada essa época, já nenhuma energia restava aos cônjuges para mais romance. O que, de novo, trouxe o divórcio ao mundo foi o surto da indústria urbana e a consequente redução do tamanho e da importância econômica da família.
Em geral, através da história, os homens sempre quiseram muitos filhos, e por essa razão declaravam sagrada a maternidade; mas as mulheres, à quais cabia todo o peso da reprodução, secretamente se rebelavam, e usavam todos os meios para escapar à gravidez e, portanto, a essa pesada tarefa. Os homens primitivos não se preocupavam em restringir a população; as crianças eram elementos aproveitáveis, e os homens só lamentavam que não fossem todas do seu sexo, pois lhe seriam de maior utilidade. Foi a mulher que invetou o aborto, o infanticídio e o repúdio da concepção - embora nas primitivas sociedades isso só acontecesse esporadicamente. Parece-nos espantosa a verificação da similaridade de motivos entre o "selvagem" e o "civilizado" quanto á evitar ter novos filhos. Fugir aos trabalhos da criação, preservar a mocidade, evitar a desgraça da maternidade extramarital, medo da morte no parto, etc. já eram justas preocupações das mulheres. Diante disso, o processo mais simples de reduzir a maternidade consistia em negar-se a mulher a ter relações com o homem no período de amamentação, a qual podia ser prolongada por muitos anos. Às vezes, entre os índios Cheyenees, as mulheres adotavam por anos o costume de se recusarem a tr novo filho antes que o primeiro fizesse dez anos. Na Nova Bretanha as mulheres não tinham filhos até dois e três anos depois do casamento. Os Guaicurús do Brasil foram diminuindo de número, porque as mulheres se recusavam a ter filhos antes dos trinta anos. Entre os papuas o aborto era frequente; "filhos são carga pesada", disse uma mulher; nós andamos cansadas de filhos". Algumas tribos maoris usavam ervas, ou alteravam a posição do útero para evitar a concepção.
Quando o aborto falhava, vinha o infanticídio. Mutos povos admitiam a matança do recém nascido, se aparecia disforme ou doente, ou se era bastardo, ou se a mãe morrera no parto. Outras tribos matavam os filhos dados à luz sob más circunstâncias; o naturais de Bondei estrangulavam os que nasciam de cabeça; os de Madagascar abandonavam, afogavam ou enterravam vivas as crianças que vinham em março ou abril, ou nas quintas e sextas-feiras, ou na última semana de cada mês. Se alguma mulher procriava gêmeos, isso era, em algumas tribos, prova de adultério, já que um mesmo homem não podia ser ao mesmo tempo pai de duas crianças; e por isso, uma ou as duas eram condenadas à morte. A prática do infanticídio prevalecia sobretudo entre os nômades, aos quais o nascimento de crianças constituía embaraço durante as marcas. A tribo dos "bangerangs" matava no nascedouro metade dos filhos; os nativos do Chaco Paraguaio só permitiam uma criança por família, em cada espaço de sete anos; os "abipones" faziam como os franceses: duas crianças em cada casa, e matavam as que vinham a mais. Quando ameaçadas de carestia, muitas tribos estrangulavam as crianças de peitos - outras as comiam. Em regra as meninas eram mais expostas ao infanticídio; às vezes torturavam-nas até a morte a fim de induzir a alma, quando de novo se reencanasse, a escolher o sexo masculino. O infanticídio era praticado sem crueldade e sem remorso, porque logo que dá à luz, a mãe não sente nenhum amor instintivo pelo filho.
Se a criança vivia algum tempo, estava liberta desse destino; surgia o amor na sua primitiva simplicidade; e em muitos casos a dedicação das mães igualava à das mulheres modernas. Por falta de leite de vaca e outros alimentos adequados, a mãe amamentava o filho até dois anos, às vezes até quatro, às vezes até doze anos; um historiador conta que um menino já fumava e ainda não desmamara; muitas vezes uma criança abandonava o brinquedo -ou o trabalho - para ir agarrar-se ao peito materno. A mãe negra costumava trazer o filhos nas costas durante o trabalho, e o amamentava jogando o comprido peito para trás. A disciplina primitiva era indulgente, mas não ruinosa; a criança ficava entregue a si mesma, tendo de enfrentar as consequências da sua estupidez, insolência ou pugnacidade; o aprender vinha passo a passo. O amor filial e o paternal mostram-se muito desenvolvidos na sociedade natural.
Perigos e doenças abundavam, de modo que a mortandade infantil sempre foi alta. O período da mocidade era breve, porque as responsabilidades maritais e marciais começavam muito cedo, e os rapazes tinham de enfrentar os trabalhos de defesa dos grupos. Consumiam-se as mulheres no carregar crianças, e os homens no prover alimentos para a família. Quando o filho mais velho estava criado, os pais já nada mais valiam para ele; pouco tempo sobrava para a vida individual, tanto no começo como no fim da vida individual, no começo e no fim de uma existência humana.
A moral na Babilônia tem fatos muto interessantes. A religião, como sempre, regulava as relações humanas.
O historiador Heródoto (pai da história) nos traz as seguintes informações para refletirmos:
" Cada mulher da Babilônia era obrigada, uma vez na vida, a postar-se no templo de Vênus e ter relações sexuais com algum desconhecido. Muitas, desdenhando misturar-se com as outras, por serem ricas, vinham em carruagens cobertas, e tomavam lugar no templo rodeadas da comitiva dos servos. Mas pela maior parte faziam assim: uma sentavam-se no templo, com uma coroa de corda na cabeça; outras estavam continuamente entrando e saindo. Ficava entre elas, em aberto, um corredor, por onde passavam os homens que vinham fazer sua escolha. Quando uma mulher se sentava, não podia voltar para casa antes que um homem lhe lançasse ao colo uma moeda de prata - e saísse com ela do templo.O que lançav a moeda dizia: "Suplico à deusa Mylitta que te favoreça"; porque para os assírios, Vênus era Mylitta. (Os gregos chamavam os babilônios de assírios. Mylitta era uma das formas de Ishtar.) A moeda podia sr das menores e a mulher não tinha o direito de rejeitá-la, porque era sagrada. As mulheres seguiam o primeiro homem que as escolhesse, não se recusando a nenhum. E depois de realizado o intercurso, e já livres da obrigação para com a deusa, voltavam para casa; e depois disso, por mais alta soma que lhes oferecessem, não teriam os seus favores. As dotadas de beleza de formas livravam-se logo da obrigação; mas as feias ou disformes ali ficavam longo tempo, incapazes de satisfazer a lei, algumas chegar a ficar três ou quatro anos; às vezes um homem, por bondade as chamava e assim as livrava do sacrifício à deusa."
Qual seria a origem deste estranho rito? Relíquia do velho comunismo sexual? Concessão do jus prime noctis? (direito à primeira noite), feita pelo futuro noivo á comunidade representada por um anônimo qualquer? Proviria do antigo tabu contra o derramamento de sangue na tribo? Preparação física para o casamento, como ainda hoje a vemos entre certas tribos australianas? Ou era um simples sacrifício à deusa - a oferta dos primeiros frutos? Não o sabemos.
Tais mulheres, entretanto, não eram prostitutas. Destas havia várias classes vivendo nos templos, onde conduziam o comércio do corpo e às vezes juntavam grandes fortunas. As prostitutas do templo eram comuns na Ásia Ocidental; encontramo-las em Israel, na Frígia, na Fenícia, na Síria, etc.; na Lídia e em Chipre as moças juntavam, desse modo, o dote para o casamento. A prostituição sagrada só foi abolida na Babilônia pelo imperador Constantino em 325. Mas a prostituição comum, conduzida em casas próprias, essa continuou.
O individualismo como liberdade, constitui luxo da civilização. Unicamente com o albor da história encontramos homens e mulheres livres das cargas da fome, da religião, da reprodução e da guerra, aptos, portanto, para se dedicar aos valores do lazer, da cultura e da arte. Portanto, meu conselho é liberdade individual.
Não devemos concluir que a moral perde o valor pelo fato de assim variar no tempo e no espaço, e que seria revelação da nossa cultura em história o desembaraçar-nos dos costumes morais do grupo em que vivemos. Antropologia em doses muito pequenas é coisa perigosa. Não há a menor dúvida que a moralidade, como diz Anatole France, "é a soma dos preconceitos dum grupo; e que, como disse o grego Anacarsis, se fossemos juntar os costumes considerados sagrados em algum grupo, e depois retirar dele tudo quanto fosse considerado imoral em outro grupo, nada restaria no monte." Mas isto não prova a desvalia da moral; só prova de quantas maneiras diferentes pode a ordem social ser preservada. Essa ordem é indispensável à vida dos grupos; não há jogo que possa ser conduzido sem regras; o homem necessita saber o que lhe pode vir de outro, nas circunstâncias ordinárias da vida. Daí a unanimidade com que os membros duma sociedade praticam o código moral, coisa tão importante como o conteúdo desse código. Nossa heroica rejeição dos costumes e da moral da nossa tribo, quando na adolescência descobrimos a relatividade da moral, apenas revela imaturidade de julgamento; mais uma década que se passe e começamos a perceber a muita sabedoria do código moral que condenávamos, pois que ele consolida a experiência de gerações e gerações anteriores. Cedo ou tarde nos vem a percepção de que mesmo o que é para nós incompreensível pode ser verdadeiro. As instituições, convenções, costumes e leis que formam a complexa estrutura duma sociedade provém do trabalho de centenas de séculos e de milhões de espíritos; um só espírito pode esperar compreendê-lo durante apenas uma vida - e muito menos aos vinte anos de idade. Temos de concluir que a moral é relativa, mas indispensável.
Desde que os velhos costumes básicos representam a seleção natural duma série de modos de agir durante séculos de experiência e erro, podemos esperar descobrir alguma utilidade social, ou valor de sobrevivência, na virgindade e no pudor, a despeito da histórica relatividade dessas instituições, da sua associação ao casamento por compra e das suas contribuições para as neuroses. O pudor era a retirada estratégica que permitia à moça melhor escolha do companheiro, ou a forçava a mostrar as suas mais belas qualidades antes de vencê-la; os embaraços que o pudor levanta contra o desejo do homem geram aqueles sentimentos de amor romântico que elevam a mulher aos seus olhos. A demonstração, ou revelação, da virgindade destruiu a naturalidade da primitiva vida sexual; mas, ao diminuir a precocidade do sexo e a maternidade muito prematura, diminuiu também o espaço entre a natural maturidade sexual, bem como a econômica. Provavelmente serviu para fortalecer o indivíduo no físico e no mental, prolongando a adolescência e a educação, e desse modo elevando o nível da raça humana.
À medida que a instituição da propriedade se desenvolveu, o adultério foi passando de "pecado venial" a "pecado mortal". Metade dos povos primitivos não lhe atribuem nenhuma importância. Mas o surto da propriedade não só levou à exigência da completa feminina, como gerou no homem o senso de domínio em relação à esposa; mesmo quando o marido emprestava a esposa a um hóspede, o que vemos é o uso dum ser que lhe pertence de maneira absoluta. O costume do suttee veio completar esta concepção: a mulher era sacrificada e enterrada no túmulo do marido, com todos pertences deste. Durante o regime do patriarcado, o adultério equiparou-se ao furto; equivaleria hoje a apropriar-se duma propriedade que não lhe pertence. O castigo variava de grau, indo da indiferença, nas tribos mais simples, ao estripamento da adultera, observado em certas tribos da Califórnia. Após séculos de punição, a nova virtude da fidelidade da esposa estabeleceu-se firmemente e gerou uma consciência no coração feminino. Muitas tribos de índios surpreenderam os conquistadores com a irrepreensível conduta das esposas; e certos viajantes lamentam que as mulheres da Europa e da América não possam se igualar em fidelidade marital às da Papuásia e do Reino Zulu.
Essa fidelidade era mais fácil para as papuas, desde que entre suas tribos, como na maioria dos povos primitivos, poucos embaraços se levantavam contra o divórcio. As uniões raramente iam além de poucos anos, entre os índios da América. "Grande número de homens velhos ou maduros", diz Schooleraft, "contam das muitas mulheres que tiveram, e dos muitos filhos espalhados pelo mundo, que lhes são desconhecidos. Eles se "riem dos europeus por terem uma só mulher, e por toda vida; admitem que o Espírito Bom os formou para serem felizes e não para permanecerem amarrados, salvo aos que o desejem por força da congenialidade." Os índios cherokees mudavam de mulher três ou quatro vezes por ano; os somoanos, que eram muito conservadores, mantinham a mesma mulher por três anos em média. Com o advento da vida agrícola, as uniões se tornaram mais permanentes. Sob o sistema patriarcal, o homem considerava antieconômico divorciar-se, porque de fato isso era perder uma escrava. Como a família se tornara a unidade de produção social, o progresso vinha do tamanho e da coesão das famílias; era de vantagem que a união s prolongasse até que o último filho estivesse criado. E chegada essa época, já nenhuma energia restava aos cônjuges para mais romance. O que, de novo, trouxe o divórcio ao mundo foi o surto da indústria urbana e a consequente redução do tamanho e da importância econômica da família.
Em geral, através da história, os homens sempre quiseram muitos filhos, e por essa razão declaravam sagrada a maternidade; mas as mulheres, à quais cabia todo o peso da reprodução, secretamente se rebelavam, e usavam todos os meios para escapar à gravidez e, portanto, a essa pesada tarefa. Os homens primitivos não se preocupavam em restringir a população; as crianças eram elementos aproveitáveis, e os homens só lamentavam que não fossem todas do seu sexo, pois lhe seriam de maior utilidade. Foi a mulher que invetou o aborto, o infanticídio e o repúdio da concepção - embora nas primitivas sociedades isso só acontecesse esporadicamente. Parece-nos espantosa a verificação da similaridade de motivos entre o "selvagem" e o "civilizado" quanto á evitar ter novos filhos. Fugir aos trabalhos da criação, preservar a mocidade, evitar a desgraça da maternidade extramarital, medo da morte no parto, etc. já eram justas preocupações das mulheres. Diante disso, o processo mais simples de reduzir a maternidade consistia em negar-se a mulher a ter relações com o homem no período de amamentação, a qual podia ser prolongada por muitos anos. Às vezes, entre os índios Cheyenees, as mulheres adotavam por anos o costume de se recusarem a tr novo filho antes que o primeiro fizesse dez anos. Na Nova Bretanha as mulheres não tinham filhos até dois e três anos depois do casamento. Os Guaicurús do Brasil foram diminuindo de número, porque as mulheres se recusavam a ter filhos antes dos trinta anos. Entre os papuas o aborto era frequente; "filhos são carga pesada", disse uma mulher; nós andamos cansadas de filhos". Algumas tribos maoris usavam ervas, ou alteravam a posição do útero para evitar a concepção.
Quando o aborto falhava, vinha o infanticídio. Mutos povos admitiam a matança do recém nascido, se aparecia disforme ou doente, ou se era bastardo, ou se a mãe morrera no parto. Outras tribos matavam os filhos dados à luz sob más circunstâncias; o naturais de Bondei estrangulavam os que nasciam de cabeça; os de Madagascar abandonavam, afogavam ou enterravam vivas as crianças que vinham em março ou abril, ou nas quintas e sextas-feiras, ou na última semana de cada mês. Se alguma mulher procriava gêmeos, isso era, em algumas tribos, prova de adultério, já que um mesmo homem não podia ser ao mesmo tempo pai de duas crianças; e por isso, uma ou as duas eram condenadas à morte. A prática do infanticídio prevalecia sobretudo entre os nômades, aos quais o nascimento de crianças constituía embaraço durante as marcas. A tribo dos "bangerangs" matava no nascedouro metade dos filhos; os nativos do Chaco Paraguaio só permitiam uma criança por família, em cada espaço de sete anos; os "abipones" faziam como os franceses: duas crianças em cada casa, e matavam as que vinham a mais. Quando ameaçadas de carestia, muitas tribos estrangulavam as crianças de peitos - outras as comiam. Em regra as meninas eram mais expostas ao infanticídio; às vezes torturavam-nas até a morte a fim de induzir a alma, quando de novo se reencanasse, a escolher o sexo masculino. O infanticídio era praticado sem crueldade e sem remorso, porque logo que dá à luz, a mãe não sente nenhum amor instintivo pelo filho.
Se a criança vivia algum tempo, estava liberta desse destino; surgia o amor na sua primitiva simplicidade; e em muitos casos a dedicação das mães igualava à das mulheres modernas. Por falta de leite de vaca e outros alimentos adequados, a mãe amamentava o filho até dois anos, às vezes até quatro, às vezes até doze anos; um historiador conta que um menino já fumava e ainda não desmamara; muitas vezes uma criança abandonava o brinquedo -ou o trabalho - para ir agarrar-se ao peito materno. A mãe negra costumava trazer o filhos nas costas durante o trabalho, e o amamentava jogando o comprido peito para trás. A disciplina primitiva era indulgente, mas não ruinosa; a criança ficava entregue a si mesma, tendo de enfrentar as consequências da sua estupidez, insolência ou pugnacidade; o aprender vinha passo a passo. O amor filial e o paternal mostram-se muito desenvolvidos na sociedade natural.
Perigos e doenças abundavam, de modo que a mortandade infantil sempre foi alta. O período da mocidade era breve, porque as responsabilidades maritais e marciais começavam muito cedo, e os rapazes tinham de enfrentar os trabalhos de defesa dos grupos. Consumiam-se as mulheres no carregar crianças, e os homens no prover alimentos para a família. Quando o filho mais velho estava criado, os pais já nada mais valiam para ele; pouco tempo sobrava para a vida individual, tanto no começo como no fim da vida individual, no começo e no fim de uma existência humana.
A moral na Babilônia tem fatos muto interessantes. A religião, como sempre, regulava as relações humanas.
O historiador Heródoto (pai da história) nos traz as seguintes informações para refletirmos:
" Cada mulher da Babilônia era obrigada, uma vez na vida, a postar-se no templo de Vênus e ter relações sexuais com algum desconhecido. Muitas, desdenhando misturar-se com as outras, por serem ricas, vinham em carruagens cobertas, e tomavam lugar no templo rodeadas da comitiva dos servos. Mas pela maior parte faziam assim: uma sentavam-se no templo, com uma coroa de corda na cabeça; outras estavam continuamente entrando e saindo. Ficava entre elas, em aberto, um corredor, por onde passavam os homens que vinham fazer sua escolha. Quando uma mulher se sentava, não podia voltar para casa antes que um homem lhe lançasse ao colo uma moeda de prata - e saísse com ela do templo.O que lançav a moeda dizia: "Suplico à deusa Mylitta que te favoreça"; porque para os assírios, Vênus era Mylitta. (Os gregos chamavam os babilônios de assírios. Mylitta era uma das formas de Ishtar.) A moeda podia sr das menores e a mulher não tinha o direito de rejeitá-la, porque era sagrada. As mulheres seguiam o primeiro homem que as escolhesse, não se recusando a nenhum. E depois de realizado o intercurso, e já livres da obrigação para com a deusa, voltavam para casa; e depois disso, por mais alta soma que lhes oferecessem, não teriam os seus favores. As dotadas de beleza de formas livravam-se logo da obrigação; mas as feias ou disformes ali ficavam longo tempo, incapazes de satisfazer a lei, algumas chegar a ficar três ou quatro anos; às vezes um homem, por bondade as chamava e assim as livrava do sacrifício à deusa."
Qual seria a origem deste estranho rito? Relíquia do velho comunismo sexual? Concessão do jus prime noctis? (direito à primeira noite), feita pelo futuro noivo á comunidade representada por um anônimo qualquer? Proviria do antigo tabu contra o derramamento de sangue na tribo? Preparação física para o casamento, como ainda hoje a vemos entre certas tribos australianas? Ou era um simples sacrifício à deusa - a oferta dos primeiros frutos? Não o sabemos.
Tais mulheres, entretanto, não eram prostitutas. Destas havia várias classes vivendo nos templos, onde conduziam o comércio do corpo e às vezes juntavam grandes fortunas. As prostitutas do templo eram comuns na Ásia Ocidental; encontramo-las em Israel, na Frígia, na Fenícia, na Síria, etc.; na Lídia e em Chipre as moças juntavam, desse modo, o dote para o casamento. A prostituição sagrada só foi abolida na Babilônia pelo imperador Constantino em 325. Mas a prostituição comum, conduzida em casas próprias, essa continuou.
O individualismo como liberdade, constitui luxo da civilização. Unicamente com o albor da história encontramos homens e mulheres livres das cargas da fome, da religião, da reprodução e da guerra, aptos, portanto, para se dedicar aos valores do lazer, da cultura e da arte. Portanto, meu conselho é liberdade individual.
Nicéas Romeo Zanchett
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